segunda-feira, 2 de junho de 2008

Ação Corporal: Matéria do Ator - Roberto Mallet

Quem é mais artista do que o ator?
A matéria plástica a que ele imprime a sua
concepção, o seu sentimento criador, não é
menos digna do que o mármore, por ser o
conjunto das expressões humanas.
(Joaquim Nabuco, Escritos e
Discursos Literários, p. 40)


A obra de arte é uma complexa composição de forma e matéria. A maneira mais simples de ver isto é no clássico exemplo do oleiro, que imprime a forma do vaso na argila.
Matéria é tudo aquilo de que alguma coisa é feita. Um quadro de Picasso é feito, digamos, de madeira, tecido, tintas. Uma sinfonia de Beethoven é feita dos sons dos diversos instrumentos e das execuções dos músicos. Um filme de película e de luz. (1)
Forma é a maneira como a matéria é organizada, sua estrutura. É uma forma o que o escultor imprime ao bronze. São formas o que Picasso inscreve com tinta em suas telas. A disposição das palavras é a forma do poema. De outro ponto de vista ela é o princípio estrutural da obra (a concepção, a idéia – eidos). A forma não é uma figura estanque; ela tem um dinamismo interno que organiza a matéria conformando assim a obra.
E no caso do ator? O que é matéria e o que é forma na atuação?
A matéria do ator é fundamentalmente seu próprio corpo. As ações que ele realiza conformam esse corpo.

Sua matéria é um organismo vivo, composto por tecidos e órgãos, com um cérebro capaz de armazenar e processar um número incalculável de informações. Por não ser exterior ao ator – ao contrário, o corpo é o próprio ator –, essa materialidade está em constante interação com o psiquismo. Um movimento corporal terá ressonâncias na memória e nos sentimentos, assim como uma lembrança ou um pressentimento têm ressonâncias corpóreas.
A forma de uma atuação é a composição das diversas ações realizadas. É a estrutura de tensões e relaxamentos musculares, o jogo de vetores e contra-vetores que o ator executa com seu corpo, e que resultam em um texto legível.

Podemos, numa outra instância, considerar todas as possibilidades de ação corporal como matéria para o ator. Essa ação, que era forma no extrato anterior, faz parte agora de um novo composto, o corpo agindo, que passa a servir de matéria para a criação poética (2). As diversas maneiras de olhar, por exemplo, apresentam-se ao ator como opções para a composição da cena. Ao realizar uma dessas possibilidades no contexto da cena, ele cria uma nova forma, agora no plano ficcional.

O primeiro extrato é concreto, o segundo abstrato; as ações do ator pertencem ao primeiro, as da persona (3) ao segundo. Fazendo uma analogia com a literatura, as ações corporais correspondem às palavras, as ações ficcionais ao significado.

Quando por exemplo um ator representa Otelo assassinando Desdêmona, o que acontece concretamente é uma série de movimentos e tensões realizados pelo corpo do ator em relação com a atriz e com a corporalidade da cena como um todo. O assassinato de Desdêmona (e todas as “realidades psíquicas” que o acompanham) se dá num plano ficcional, espectral. Ou, dito de outra maneira, o assassinato se dá concretamente na imaginação dos artistas e dos espectadores envolvidos na representação.

A forma da obra do ator é então, do ponto de vista da encenação, a composição das ações ficcionais realizadas pela persona; do ponto de vista da atuação a composição das ações corporais realizadas pelo próprio ator ao longo da encenação.

Uma vez que a atuação (como todas as artes espetaculares) só existe enquanto está sendo realizada diante de um público, a sua materialidade não se limita às ações corporais – ela inclui a própria pessoa do ator. O que o espectador vê não é apenas a persona agindo. Ele vê o ator “jogando” (realizando) essa ação dentro do contexto poético. E vê ainda a relação pessoal que o ator estabelece com a poética e com o conteúdo da obra, vê o sentido que ela faz para ele.
A arte da representação é reveladora. Todo ação realizada em cena nos fala não apenas dela mesma; ela também nos fala do homem que realiza essa ação. O ofício do ator é, como dizia Dostoiévski do seu ofício de escritor, “mostrar o homem no homem”. Através da ação.

* Publicado na Revista do 17º Festival Universitário de Teatro de Blumenau, 2004, págs. 47-48.
(1) Esta noção de matéria corresponde ao que Fayga Ostrower chama de materialidade: Usamos o termo MATERIALIDADE, em vez de matéria, para abranger não somente alguma substância, e sim tudo o que está sendo formado e transformado pelo homem. Se o pedreiro trabalha com pedras, o filósofo lida com pensamentos, o matemático com conceitos, o músico com sons e formas de tempo, o psicólogo com estados afetivos, e assim por diante. Usamos o termo na qualificação corrente “natureza do que é material” (...), ampliando contudo o sentido de ‘material’.” (OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Imago Ed. Ltda., Rio de Janeiro, 1957, pág. 31-2. Os grifos estão no original.)

(1) Esta noção de matéria corresponde ao que Fayga Ostrower chama de materialidade: “Usamos o termo MATERIALIDADE, em vez de matéria, para abranger não somente alguma substância, e sim tudo o que está sendo formado e transformado pelo homem. Se o pedreiro trabalha com pedras, o filósofo lida com pensamentos, o matemático com conceitos, o músico com sons e formas de tempo, o psicólogo com estados afetivos, e assim por diante. Usamos o termo na qualificação corrente “natureza do que é material” (...), ampliando contudo o sentido de ‘material’.” (OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Imago Ed. Ltda., Rio de Janeiro, 1957, pág. 31-2. Os grifos estão no original.)

(2) Portanto todo treinamento é, por um lado, desenvolvimento e aprimoramento da ação poética, e por outro criação de um repertório que servirá de matéria para a criação da cena.

(3) Utilizo persona em vez de personagem pela associação imediata deste último termo com o gênero realista.

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