quarta-feira, 16 de julho de 2008

Em Busca de Seu Próprio Clown - Jacques Lecoq

Na tradição do circo, o clown começava sendo um acrobata, malabarista ou trapezista, e depois, com o passar do tempo, não podendo mais realizar os números no mesmo nível de qualidade, ensinava-os a um jovem e tornava-se um clown.
Desde os anos sessenta manifesta-se um interesse pelo clown. Mas o clown não está mais ligado ao circo: trocou o picadeiro pela cena e pela rua. Muitos jovens desejam ser clowns; é uma profissão de fé, uma tomada de posição perante a sociedade: ser esse personagem à parte e reconhecido por todos, pelo qual sentimos um vivo interesse, naquilo que ele não sabe fazer, lá onde ele é fraco. Mostrar suas fraquezas (as pernas finas, o peito largo, os braços pequenos) e enfatizá-las usando roupas diferentes daquelas que usualmente as ocultam, é aceitar-se e mostrar-se tal como se é.
Numerosos jovens em todos os países andam pelas ruas com três bolinhas, uma cambalhota, uma parede invisível, querendo ser vistos. O fenômeno ultrapassa a simples representação e seu espetáculo. Esse clown "psicológico", que pode desenvolver uma pedagogia dramática, necessária à liberdade do comediante, não é forçosamente um clown de espetáculo e permanece no mais das vezes sendo um modo de expressão privado. O pequeno nariz vermelho não basta para fazer um clown profissional e a representação não deve ser uma exibição consoladora.
O clown exige também uma proeza, freqüentemente ao inverso da lógica; ele põe em desordem uma certa ordem e permite assim denunciar a ordem vigente: deixa cair o chapéu, vai apanhá-lo mas, desajeitadamente, dá-lhe um pontapé e, sem querer, pisa na bengala que lhe joga de volta o chapéu nas mãos. O clown erra onde não esperamos e acerta onde não esperamos. Se tentar um salto perigoso, cai, mas o executa quando lhe dão uma bofetada. Assim o clown Grock, escondido atrás de um biombo, conseguia junglar com três bolas, só elas visíveis ao público, o que não conseguia fazer perante o público.
O clown toma tudo ao pé da letra, em seu sentido imediato: quando a noite cai (bum!) ele a procura no chão e nós rimos de seu lado idiota e ingênuo. Se alguém lhe manda tomar um ar ele quer segurá-lo com a mão. Todos pregam-lhe peças. Alguém o manda abaixar-se e olhar para os pés: ele se abaixa e leva um pontapé nos fundilhos; achando a piada "muito boa", vai passá-la a um terceiro personagem; este lhe pede para mostrar como fazê-lo e o clown recebe um novo pontapé deste novo personagem, que já conhecia a blague.
O pequeno nariz vermelho, "a menor máscara do mundo", dando ao nariz uma forma redonda, banha os olhos de ingenuidade e aumenta o rosto, desarmando-o de qualquer defesa. Ele não causa medo, o que faz com que seja amado por todas as crianças.
A pantomima, outrora, desceu ao picadeiro do circo e deu ao clown o rosto branco de Pierrot, que torna-se então o clown branco. O clown, hoje, é sobretudo o augusto e, portanto, todos os cômicos do picadeiro.
Beckett deu uma nova dimensão ao clown, fazendo com que ele descobrisse os altos sopros da existência. O herói trágico tornou-se inabordável, e o clown o substitui, "Esperando Godot"...
Clowns de teatro e clowns de circo misturam-se no Circo Alfred, na Tchecoslováquia, com Ctibor Turba e Boleslav Polivka. Pierre Byland e Philippe Gaulier, clowns de teatro absurdo, fazem um espetáculo, Os Pratos. Cada país encontra seus clowns, o fenômeno é internacional, e não é o circo que os faz nascer. Os jovens comediantes se reconhecem nesse mundo clownesco que desenvolvem longe da imagem típica do clown de circo.
Essa busca de seu próprio clown reside na liberdade de poder ser o que se é e de fazer os outros rirem disso, de aceitar a sua verdade. Existe em nós uma criança que cresceu e que a sociedade não permite aparecer; a cena a permitirá melhor do que a vida.
Esse caminho é puramente pedagógico e essa experiência serve ao comediante para além mesmo da representação clownesca. Não basta, para um clown de teatro, apresentar-se ao público fracassando naquilo que procura realizar e com uma roupa típica e nariz vermelho. O clown profissional deve saber realizar seus fracassos com talento e trabalho. Os clowns de teatro fundamentam-se mais sobre o talento do comediante que sobre o do acrobata; sem o nariz vermelho, eles animam um mundo geralmente absurdo e trágico. Em companhias, montam peças curtas criando seus personagens a partir de si mesmos, caricaturando a si mesmos.

In "Le Théâtre du geste", org. de Jacques Lecoq, Ed. Bordas, Paris, 1987, pág. 117. Tradução de Roberto Mallet.

O ator - Patrice Pavis

A análise do espetáculo deveria começar pela descrição do ator, pois este está no centro da encenação e tende a reduzir a si o resto da representação. Trata-se, porém, do elemento mais difícil de apreender. Antes de pretender analisar o jogo, deve-se começar por propor uma teoria do ator.

1. O trabalho do ator
1.1. A abordagem por uma teoria das emoções
De que precisamos para descrever o trabalho do ator? Precisamos realmente partir de uma teoria das emoções, como tenderia a sugerir a história do jogo do ator moderno, de Diderot a Stanislavski e Strasberg? Tal teoria das emoções aplicada ao teatro só valeria, no máximo, para um tipo muito localizado de ator: o do teatro da mimese psicológica e da tradição da retórica das paixões. Em contrapartida, teríamos a maior necessidade de uma teoria da significação e da encenação global, onde a representação mimética dos sentimentos é apenas um aspecto entre muitos outros. Ao lado das emoções, aliás muito difíceis de decifrar e de anotar, o ator-dançarino se caracteriza por suas sensações cinestésicas, sua consciência do eixo e do peso do corpo, do esquema corporal, do lugar de seus companheiros no espaço- tempo: eis parâmetros que não têm a fragilidade das emoções e que poderíamos assinalar com maior facilidade.
No teatro, as emoções dos atores não têm que ser reais ou vividas. Antes de mais nada, devem ser visíveis, legíveis e conformes com convenções de representação dos sentimentos. Essas convenções são ora as da teoria da verossimilhança psicológica do momento, ora as de uma tradição de jogo que codificou os sentimentos e a representação deles. A experiência emocional do ser humano, que reúne os traços comportamentais por meio dos quais a emoção se revela (sorrisos, choros, mímicas, atitudes, posturas), encontra no teatro uma série de emoções padronizadas e codificadas, que figuram comportamentos identificáveis. Estes, por sua vez, geram situações psicológicas e dramáticas que formam o arcabouço da representação. No teatro, as emoções são sempre manifestadas graças a uma retórica do corpo e dos gestos onde a expressão emocional é sistematizada, e até mesmo codificada. Quanto mais as emoções são traduzidas em atitudes ou em ações físicas, tanto mais elas se liberam das sutilezas psicológicas do indizível e da sugestão.
A teoria das emoções é por si só insuficiente para esperar descrever o trabalho do dançarino e do ator, e é necessário um quadro teórico totalmente diferente que ultrapasse em muito o da psicologia. Aliás, a partir do momento em que o estudo do ator se abriu para os espetáculos extra-europeus, logo se ultrapassou a teoria psicológica das emoções, que vale no máximo para as formas teatrais que imitam os comportamentos humanos, sobretudo verbais, de maneira mimética, como a encenação naturalista.

1.2. Uma teoria global do ator
Será possível uma teoria do ator? Nada é menos certo, pois se pensamos saber em que consiste a tarefa do ator, temos bastante dificuldade em descrever e perceber o que ele faz precisamente, em compreender não simplesmente com os olhos, mas, como pede Zeami, com o espírito. Mal podemos dizer que ele parece falar e agir não mais em seu próprio nome, mas em nome de uma personagem que ele faz de conta ser ou imitar. Mas como é que ele procede, como realiza todas essas ações, e que sentidos produzem elas para o espectador? Bem temerária e ambiciosa seria a teoria que pretendesse englobar todas essas atividades de jogo e de produção do sentido, pois a ação do ator é comparável à do ser humano em situação normal, mas tendo, além disso, o parâmetro da ficção, do "como se" da representação. O ator situa-se no âmago do acontecimento teatral: é o vínculo vivo entre o texto do autor (diálogos ou indicações cênicas), as diretivas do encenador e a escuta atenta do espectador; ele é o ponto de passagem de toda e qualquer descrição do espetáculo.
Paradoxalmente, seria mais fácil basear a teoria do ator não a limitando à do ator ocidental, mas incluindo nela a do ator-cantor-dançarino de tradições e culturas extra- européias. Para essas tradições, a habilidade do ator é muito mais técnica, quer dizer mais facilmente descritível e estritamente limitada a formas codificadas e repetíveis que nada devem à improvisação ou à livre expressão. Nada comparável com o ator da tradição ocidental psicológica, o qual não adquiriu todas essas técnicas gestuais, vocais, musicais, coreográficas e se confinou a um gênero preciso: o teatro de texto falado. O ator ocidental parece sobretudo querer dar a ilusão de que encarna um indivíduo cujo papel lhe foi confiado numa história onde ele intervém como um dos protagonistas da ação. Daí a dificuldade em descrever o jogo ocidental, pois as convenções tentam negar-se a si mesmas; dificuldade também de esboçar uma teoria da sua prática, partindo do ponto de vista do observador (espectador e/ou teórico) e não do ponto de vista da experiência subjetiva do ator. Que faz o ator em cena? Como se prepara para a sua atividade artística? Como transmite ao espectador uma série de orientações ou de impulsos para o sentido? Não faremos aqui uma história do ator através dos tempos - aliás, isso ainda está por ser feito -, mas nos limitaremos a algumas observações sobre a metodologia da análise do ator contemporâneo ocidental, que não se deve, porém, limitar ao ator naturalista ou ao do Método, inspirado por Stanislavski e Strasberg. De fato, o ator não imita necessariamente uma pessoa real: ele pode sugerir ações por algumas convenções ou por um relato verbal ou gestual.
Precisaríamos primeiro estabelecer a partir de quando o ser humano está em situação de ator, em que consistem os traços característicos do seu jogo. O ator se constitui enquanto tal desde que um espectador, a saber um observador exterior, o olha e o considera como "extraído" da realidade ambiente e portador de uma situação, de um papel, de uma atividade fictícios ou pelo menos distintos da sua própria realidade de referência. Não basta, porém, que tal observador decida que tal pessoa representa uma cena e, portanto, que é um ator (estaríamos então no que Boal chama de "teatro invisível"): é preciso também que o observado tenha consciência de representar um papel para o seu observador, e que a situação teatral fique, assim, claramente definida. Quando a convenção se estabelece, tudo o que o observado faz e diz já não é considerado como verdade indiscutível, mas como ação ficcional que só tem sentido e verdade no mundo possível onde o observado e o observador concordam em situar-se. Assim fazendo, definindo o jogo como uma convenção ficcional, estamos no caso do ator ocidental que brinca de ser um outro; ao contrário, o performer oriental (1) (o ator-cantor-dançarino) que canta, dança ou recita, realiza essas ações reais enquanto ele mesmo, enquanto performer, e não enquanto personagem que faz de conta que é um outro fazendo-se passar como tal para o espectador. Empregamos cada vez mais o termo performer para insistir na ação realizada pelo ator, em oposição à representação mimética de um papel. O performer é primeiramente aquele que está física e psiquicamente presente diante do espectador.

1.3. Os componentes e as etapas do trabalho do ator
O ator ocidental - e mais precisamente o ator da tradição psicológica - estabelece o papel sistematicamente: "compõe" uma partitura vocal e gestual em que se inscrevem todos os indícios comportamentais, verbais e extraverbais, o que dá ao espectador a ilusão de ser confrontado com uma pessoa de verdade. Não só ele empresta o seu corpo, a sua aparência, a sua voz, a sua afetividade, mas - pelo menos para o ator naturalista - ele se faz passar por uma pessoa de verdade, semelhante àquela de que nos aproximamos quotidianamente, com quem podemos identificar-nos, tanto encontramos nela impressões de semelhança com o que sabemos de nosso caráter, de nossa experiência do mundo, das emoções e dos valores morais e filosóficos. Logo esquecemos de que estamos enganando a nós mesmos, construindo uma totalidade a partir de poucos indícios: esquecemos a técnica do ator, identificamo-nos com a personagem e mergulhamos no universo que ela representa. No entanto, o ator cumpre um trabalho bem preciso cuja complexidade nem sempre se imagina. Também não é fácil distinguir, como fazem Stanislavski e Strasberg, o trabalho sobre si mesmo e o trabalho sobre o papel. Enquanto o trabalho sobre si - a saber, essencialmente o trabalho sobre as emoções e sobre o aspecto exterior do ator - está no centro dos escritos de ambos, o trabalho sobre o papel, que determina toda uma reflexão dramatúrgica, fica bastante descuidado, vem sempre depois de uma preparação psicológica: o trabalho sobre o papel não deve começar antes de o ator ter adquirido os meios técnicos para realizar as suas intenções. Na realidade, há antes um ir e vir constante entre si mesmo e o papel, entre o ator e a sua personagem. O trabalho do ator sobre si mesmo compreende as técnicas de relaxamento, concentração, memória sensorial e afetiva, assim como o treinamento da voz e do corpo. Em suma: tudo o que é um prelúdio para a figuração de um papel.

Os indícios da presença
O primeiro "trabalho" do ator, que não é um trabalho, propriamente falando, é o de estar presente, o de situar-se aqui e agora para o público, como um ser vivo que se dá "diretamente", "ao vivo", sem intermediários. Dizem muitas vezes que os grandes atores têm antes de mais nada uma presença que é um dom do céu e que os diferencia dos necessitados. Talvez! Mas será que por definição todo e qualquer ator presente diante de mim não manifesta uma presença inalienável? É uma marca do ator de teatro que eu o perceba "primeiro" como materialidade presente, como "objeto" real pertencente ao mundo exterior e que depois eu o imagine num universo ficcional, como se não estivesse lá diante de mim, mas na corte do rei Luís XIV (se for de O Misantropo que estivermos falando). O ator de teatro tem, portanto, um estatuto duplo: ele é pessoa real, presente, e, ao mesmo tempo, personagem imaginário, ausente ou pelo menos situado numa "outra cena". Descrever essa presença é a coisa mais difícil que existe, pois os indícios escapam a qualquer apreensão objetiva e o "corpo místico" do ator se oferece e se retrai logo em seguida. Daí todos os discursos mistificadores sobre a presença de tal ou qual ator, discursos que são, na realidade, normativos ("este ator é bom, aquele não o é"). (2)

A relação com o papel
A sua segunda tarefa é "permanecer na personagem", e, para o ator naturalista, manter o jogo, não quebrar a ilusão de que ele é essa pessoa complexa em cuja existência devemos acreditar. Isso requer uma concentração e uma atenção em todos os instantes, seja qual for a convicção íntima do ator quanto a ele ser a sua personagem ou seja qual for a sua técnica para dar-lhe simplesmente a imagem exterior. Ele pode, de fato, identificar-se com o papel por todos os tipos de técnicas de autopersuasão, seja enganar o mundo exterior fazendo de conta que é um outro, seja tomar suas distâncias com relação ao papel, citá-lo, zombar dele, sair dele ou nele entrar à vontade. Seja como for, sempre deve ser mestre da codificação escolhida e das convenções de jogo que aceitou. A descrição do jogo obriga a observar e a justificar a evolução do vínculo do ator com a sua personagem.

A dicção
A dicção de um texto eventual é apenas um caso particular dessa estratégia comportamental: ora se torna verossímil, submetida à mimese e às maneiras de falar do meio em que se situa a ação, ora desconectada de qualquer mimetismo e organizada em um sistema fonológico, retórico, prosódico que possua suas regras próprias e não procure produzir efeitos de real copiando maneiras autênticas de falar.

O ator na encenação
Graças ao controle do comportamento e da dicção, o ator imagina possíveis situações de enunciação onde o seu texto e suas ações adquirem um sentido. Essas situações, no mais das vezes, são apenas sugeridas por alguns indícios que esclarecem a cena e o papel. É a responsabilidade do encenador, mas também do ator, decidir que indícios serão escolhidos. Somente o ator sabe (mais ou menos) que escala os seus indícios gestuais, faciais ou vocais possuem, se os espectadores são capazes de percebê-los, e que significações ele poderia atribuir a eles. Na "posse" dos seus signos, é preciso que seja ao mesmo tempo suficientemente claro para ser percebido e sutil para ser diferenciado ou ambíguo. Neste sentido, a teoria do ator inscreve-se numa teoria da encenação, e, de modo mais geral, da recepção teatral e da produção do sentido: o trabalho do ator sobre si mesmo, em particular sobre as suas emoções, só tem sentido na perspectiva do olhar do outro, portanto do espectador que deve ser capaz de ler os indícios fisicamente visíveis da personagem assumida pelo ator.

Gestão e leitura das emoções
O ator sabe administrar as suas emoções e fazer com que sejam lidas. Nada o obriga a sentir realmente os sentimentos da sua personagem e se toda uma parte da sua formação consiste, desde Stanislavski e Strasberg, em cultivar a memória sensorial e emocional para melhor encontrar, prontamente e com segurança, um estado psicológico sugerido pela situação dramática, trata-se apenas de uma opção entre muitas outras - a mais "ocidental", mas não necessariamente a mais interessante. Aliás, mesmo o ator do "Sistema" stanislavskiano ou do "Método" strasberguiano não utilizam os seus próprios sentimentos tais quais para representar a personagem, à maneira do ator romano Polus que usou as cinzas do seu próprio filho para representar o papel de Electra portando a urna de Orestes. É igualmente tão importante para o ator saber fingir e reproduzir friamente as próprias emoções, quando mais não fosse para não depender da espontaneidade, pois, como nota Strasberg, "o problema fundamental da técnica do ator está na não contabilidade das emoções espontâneas". Mais do que um controle interior das emoções, o que conta para o ator, em última análise, é a legibilidade, pelo espectador, das emoções que o ator interpreta. Não é necessário que o espectador encontre o mesmo tipo de emoções que na realidade; portanto, não é necessário que o ator se entregue a uma expressão quase "involuntária" de suas emoções. Na verdade, às vezes as emoções são codificadas, repertoriadas e catalogadas num estilo de jogo: assim ocorre no jogo melodramático, no século XIX, assim nas atitudes retóricas da tragédia clássica ou em tradições extra-européias (por exemplo, a dança indiana Odissi). Às vezes, os mimos ocidentais (Decroux, Marceau, Lecoq) tentaram codificar as emoções auxiliados por um tipo de movimento ou de atitude. Segundo Jacques Lecoq, "cada estado passional se encontra num movimento comum: o orgulho sobe, o ciúme obliqua e se esconde, a vergonha se abaixa, a vaidade gira".
Na prática contemporânea, desde Meyerhold e Artaud até Grotowski e Barba, o ator dá a ler diretamente emoções já traduzidas em ações físicas cuja combinatória forma a própria fábula. As emoções já não são, para ele, como na realidade afetiva, uma "perturbação súbita e passageira, ‘ gancho' na trajetória da vida quotidiana": são movimentações, motions físicas e mentais que o motivam na dinâmica do seu jogo, o espaço-tempo-ação da fábula onde ele se inscreve. Mais do que se entregar (para o ator como para o espectador ou para o teórico) a profundas introspecções sobre o que sente ou não sente o ator, é preferível, portanto, partir da formalização, da codificação dos conteúdos emocionais. De fato, é mais fácil observar o que o ator faz do seu papel, como ele o cria e se situa em relação a ele. Pois o ator é "um poeta que escreve sobre a areia (...) Como um escritor, ele extrai dele mesmo, da sua memória, a maestria da sua arte, ele compõe uma história segundo a personagem fictícia proposta pelo texto. Mestre de um jogo de engodos, ele acrescenta e diminui, oferece e retira; esculpe no ar o seu corpo movente e a sua voz mutável".
Na prática teatral contemporânea, o ator já nem sempre remete a uma personagem de verdade, a um indivíduo que forma um todo, a uma série de emoções. Ele já não significa por simples transposição e imitação: constrói as suas significações a partir de elementos isolados que pede emprestados a partes do seu corpo (neutralizando todo o restante): mãos que mimam toda uma ação; boca unicamente iluminada, excluindo todo o corpo; voz do contador que propõe histórias e representa alternadamente vários papéis.
Assim como para a psicanálise o sujeito é um sujeito "esburacado", intermitente, com "responsabilidade limitada", assim também o ator contemporâneo já não é encarregado de mimar um indivíduo inalienável; já não é um simulador, mas um estimulador, ele "performa" de preferência as suas insuficiências, as suas ausências, a sua multiplicidade. Também já não é obrigado a representar uma personagem ou uma ação de maneira global e mimética, como uma réplica da realidade. Em suma, ele foi reconstituído no seu oficio pré-naturalista. Ele pode sugerir a realidade por uma série de convenções que serão percebidas e identificadas pelo espectador. O performer, contrariamente ao ator, não representa um papel: ele age em seu próprio nome. (3)
Aliás, é raro, para não dizer impossível, que o ator esteja inteiramente no seu papel, a ponto de fazer esquecer que ele é um artista que representa uma personagem e que constrói, assim, um artefato. Mesmo o ator segundo Stanislavski não faz esquecer que representa, que está engajado numa ficção e que constrói um papel, e não um ser humano de verdade, como Frankenstein. Num palco, o ator nunca se permite esquecer enquanto artista-produtor, pois a produção do espetáculo faz parte do espetáculo e do prazer do espectador (sempre estou consciente de que estou no teatro e de que percebo um ator, portanto um artista, um ser artificialmente construído).

Identificação ou distância
Muitas vezes o ator procura identificar-se com o seu papel: mil pequenas artimanhas servem para ele se persuadir de que é essa personagem de que o texto lhe fala e que ele deve encarnar para o mundo exterior. Ele faz de conta que acredita que a sua personagem é uma totalidade, um ser semelhante aos da realidade, quando na verdade ele só é composto de magros indícios que ele e o espectador devem completar e suprir para produzir a ilusão de ser uma pessoa. Às vezes, ao contrário, ele indica por uma ruptura de jogo que a manobra não o engana e ocorre que dê um depoimento pessoal sobre a personagem que supostamente está representando.

1.4 Métodos de análise do jogo do ator
Para contrabalançar a visão metafísica, e até mística, do ator (e todos os discursos mistificantes que o acompanham, sobretudo na literatura jornalística sobre "a vida dos atores"), para ultrapassar o debate estéril sobre o "reviver" ou o "fingir", só existiriam áridas análises técnicas do jogo do ator. Sendo ainda pouco elaborados os instrumentos de análise, nós nos limitaremos a sugerir algumas pistas possíveis para a pesquisa futura.

As categorias históricas ou estéticas
Cada época histórica tende a desenvolver uma estética normativa que se define por contraste com as anteriores e propõe uma série de critérios bastante claros. Torna-se tentador, então, descrever uma série de estilos: romântico, naturalista, simbolista, realista, expressionista, épico, etc. O espectador moderno dispõe, muitas vezes, de uma grade histórica rudimentar que o ajuda a identificar, por exemplo, jogo "naturalista", brechtiano, artaudiano, do actor's studio ou grotowskiano. Momentos históricos e escolas de jogo são, assim, assimilados a categorias estéticas muito aproximativas. O interesse dessas categorizações é de não segmentar, separar o estudo do ator de todo o seu ambiente estético ou sociológico. O ator naturalista, por exemplo, o da época de Zola ou Antoine, será descrito a partir de uma teoria do meio, de uma estética do verossímil e dos fatos verdadeiros, de acordo com a ideologia e a estética determinista e naturalista. Muitas vezes, porém, a análise permanece superficial, e tautológica: é ator naturalista, dizem-nos freqüentemente, aquele que evolui num universo naturalista... Semelhante tautologia não esclarece em nada os gestos especificamente naturalistas e os procedimentos do jogo psicológico.
Melhor seria tentar uma hipótese sobre um modelo cultural que distingue no tempo e no espaço diversas maneiras de conceber o corpo e de se prestar a diferentes modos de significação.

As descrições semiológicas
Elas dizem respeito a todos os componentes do jogo do ator: gestualidade, voz, ritmo da dicção e das marcações. É precisamente a determinação desses componentes e, portanto, a decupagem em sistemas que são problemáticos e não são evidentes, pois não é, nessa matéria, decupagem e tipologia objetiva e universal. Cada campo recorre às semiologias setoriais existentes para extrair os grandes princípios da sua organização. A dificuldade reside, porém, em não fragmentar o desempenho do ator em especialidades demasiado estreitas, perdendo assim de vista a globalidade da significação: tal gestual só tem sentido em relação a uma marcação, a um tipo de dicção, a um ritmo, sem falar do conjunto da cena e da cenografia de que ele faz parte. Devemos, portanto, procurar desenvolver uma decupagem em unidades que preservem coerência e globalidade. Em vez de uma separação entre gesto e texto, ou gesto e voz, nós nos esforçaremos por distinguir macro-seqüências dentro das quais os diversos elementos se reúnem, se reforçam ou se distanciam, formando um conjunto coerente e pertinente, suscetível depois de combinar-se com outros conjuntos. Poderemos também considerar o ator como o realizador de uma montagem (no sentido filmico do termo), já que ele compõe o seu papel a partir de fragmentos: indícios psicológicos e comportamentais para o jogo naturalista que acaba por produzir, apesar de tudo, a ilusão da totalidade; momentos singulares de uma improvisação ou de uma seqüência gestual incessantemente reelaborados, laminados, cortados e recolados para uma montagem de ações físicas em Meyerhold, Grotowski ou Barba. A análise da seqüência de jogo só pode ser feita levando em consideração o conjunto da representação, repondo-a na estrutura narrativa que revela a dinâmica da ação e a organização linear dos motivos. Assim, ela chega à análise da representação. Por exemplo, é possível distinguir, no trabalho gestual, vocal e semântico do ator, vários grandes tipos de vetores. O vetor define-se como uma força e um deslocamento desde certa origem até um ponto de aplicação e segundo a direção dessa linha que vai de um ponto a outro. Distinguiremos quatro grandes tipos de vetores:
1. acumuladores; condensam ou acumulam vários signos; 2. conectores: ligam dois elementos da seqüência em função de uma dinâmica; 3. podadores: provocam uma ruptura no ritmo narrativo, gestual, vocal, o que torna atento ao momento em que o sentido "muda de sentido"; 4. mobilizadores: fazem passar de um nível de sentido a outro ou da situação de enunciação aos enunciados.
Esses vetores são o arcabouço muito elementar do trabalho do ator, que é, obviamente, muito mais fino e lábil, constituído por uma miríade de micro-atos, de matizes infinitos da voz ou do gesto. Eles são, no entanto, indispensáveis para que o ator seja, ao mesmo tempo, coerente e "legível" e que funcione como uma orientação e um amplificador para todo o resto da representação.
De fato, o ator só tem sentido em relação ao seus parceiros na cena: é preciso, portanto, anotar como ele se situa diante deles, se o seu jogo é individualizado, pessoal ou típico do jogo do grupo; como ele se inscreve na configuração (o blocking, como se diz em inglês) do conjunto. Como, porém, descrever o gesto por um discurso sem que ele perca toda e qualquer especificidade, todo e qualquer volume, toda e qualquer intensidade, toda e qualquer relação vivificante com o resto da representação? O trabalho do ator compreende-se apenas se for recolocado no contexto global da encenação, lá onde ele participa na elaboração do sentido da representação inteira. Anotar todos os detalhes não serve para nada, se não virmos em que esse trabalho se prolonga na representação inteira.

Pragmática do jogo corporal
A descrição do ator exige uma abordagem ainda mais técnica para apreender a variedade do trabalho corporal executado. Partiremos, por exemplo, da pragmática do jogo corporal tal como a descreve Michel Bernard ao determinar os sete operadores seguintes:
1. A extensão e a diversificação do campo da visibilidade corporal (nudez, mascaramento, deformação, etc.). Em suma: da sua iconicidade.2. A orientação ou disposição das faces corporais relativamente ao espaço cênico e ao público (face; costas, perfil, três quartos, etc.).3. As posturas, quer dizer, o modo de inserção no solo e mais amplamente o modo de gestão da gravitação corporal (verticalidade, obliqüidade, horizontalidade...).4. As atitudes, quer dizer, a configuração das posições somáticas e segmentares com relação ao ambiente (mão, antebraço, braço, tronco/cabeça, pé, perna...).5. Os deslocamentos ou as modalidades da dinâmica de ocupação do espaço cênico.6. As mímicas enquanto expressividade visível do corpo (mímicas do rosto e gestuais) em seus atos tanto úteis quanto supérfluos, e, conseqüentemente, do conjunto dos movimentos percebidos.7. A vocalidade, quer dizer, a expressividade audível do corpo e/ou dos substitutos e complementos (ruídos orgânicos naturais ou artificiais: com os dedos, os pés, a boca, etc.).
Estes sete pontos de referencia de Michel Bernard possibilitam uma discussão precisa da corporalidade do ator, o que é um meio de anotar e de comparar diferentes usos do corpo. Poderíamos acrescentar-lhes outros dois: os efeitos do corpo e a propriocepção do espectador.
8. Os efeitos do corpo. O corpo do ator não é um simples emissor de signos, um semáforo regulado para ejetar sinais dirigidos ao espectador; ele produz efeitos sobre o corpo do espectador, quer os chamemos energia, vetor de desejo, fluxo pulsional, intensidade ou ritmo. Como veremos mais adiante com a análise de Ulrike Meinhof, tais efeitos são mais eficazes do que uma longa explicação de signos gestuais pacientemente codificados e depois decodificados na intenção de um espectador-semiólogo "médio". Daí esta observação de Dort: o ator seria o anti-semiólogo por excelência, já que destrói os signos da encenação em vez de os construir.9. Propriocepção do espectador. Já não se trata diretamente de uma propriedade do ator, mas da percepção interna, pelo espectador, do corpo do outro, das sensações, dos impulsos e dos movimentos que o espectador percebe do exterior e transfere para si mesmo. (4)

As "técnicas do corpo" para uma antropologia do ator
Todas as descrições da semiologia e da pragmática preparam para uma antropologia do ator, ainda a inventar, que formularia do modo mais concreto possível perguntas ao ator e a seu corpo, perguntas que a análise do espetáculo deve sistematicamente dirigir a toda e qualquer encenação.
1. De que corpo o ator dispõe antes mesmo de receber um papel? Em que ele já está impregnado pela cultura ambiente e como esta se alia ao processo de significação do papel e do jogo? Como o corpo do ator "dilata" a sua presença assim como a percepção do espectador?
2. Que é que o corpo mostra, que é que o corpo esconde? Que é que a cultura, de San Francisco a Ryad, aceita revelar para nós da sua anatomia, que é que ela escolhe para mostrar e esconder, e em que perspectiva?
3. Quem é que segura os cordéis do corpo? Ele é manipulado como uma marionete ou dá por si mesmo, e por dentro, suas ordens de marcha? E onde é que o piloto tem sua sede?
4. O corpo é centrado sobre si mesmo, levando toda e qualquer manifestação a um centro operacional de onde tudo parte e para onde tudo volta? Ou então o corpo está descentrado, colocado na periferia de si mesmo, tendo importância sobretudo para o que já está apenas na periferia?
5. Que é que, no seu meio cultural ambiente, passa por um corpo controlado ou por um corpo "desenfreado"? Que é que será vivido como um ritmo lento ou rápido? Em que o afrouxamento ou a aceleração de uma ação mudarão o olhar do espectador, solicitando o seu inconsciente ou provocando a sua exaltação?
6. Como o corpo do ator, corpo que fala e que representa, convida o espectador a "entrar na dança", a adaptar-se ao sincronismo e a fazer convergir os comportamentos comunicacionais?
7. Como o corpo do ator/atriz é "vivido" visualmente? Cineticamente ao perceber o movimento? Hapticamente (efetuando o movimento)? Em perspectiva desordenada ou então vinda de dentro, segundo que acontecimento cinético e estésico? Como estimula a memória corporal do espectador, sua motricidade e sua propriocepção?
8. Em suma, para formular a pergunta junto com Barba, o ator muda de corpo a partir do momento em que troca a vida quotidiana pela presença cênica e pela energia abundantemente dispensada? Em que ele continua sempre, para o espectador, um "estrangeiro que dança" (Barba)?

Notas
(1) Para um excelente panorama histórico, ver Robert Abirached, "Les jeux de l'être et du paraître" [Os jogos do ser e do parecer], Le Théâtre [O Teatro]. Paris: Bordas, 1980.
(2) Sobre a crítica da presença na teoria do ator, sobretudo em Barba, ver Patrice Pavis. "Un canoé a la dérive?" [Uma canoa à deriva?], Théâtre/Public, n' 126, 1995.
(3) Lee Strasberg. L' Actor‘s Studio et le méthode [0 Actor' s Studio e o método]. Paris; Interéditions, 1989. p. 177. Jacques Lecoq (ed.). Le Théâtre du geste [O teatro do Gesto]. Paris: Bordas, 1987. p. 20. Antoine Vitez. Le Théâtre des idées [O Teatro das Idéias]. Paris: Gallimard, 199l. p, 144.
(4) Michel Bernard. "Quelques réflexions sur le jeu de l'acteur contemporain" [Algumas reflexões sobre o jogo do ator contemporâneo], Bulletin de psychologie, t. XXXVIII, nº 370, 1986. Bernard Dort. La Représentation émancipée [A Representação Emancipada]. Arles: Actes Sud, l988. p. 183.
(5) Eugenio Barba. The Secret Art of the Performer [A Arte Secreta do Ator]. Londres: Routledge, 1991. p, 84.
In "L' analyse des spectacles; théâtre, mime, danse, danse-théatre, cinéma", Col. Fac./Arts du spectacle. Paris; Nathan, 1996, p. 53-65. - Tradução de José Ronaldo Faleiro.

A idéia da peça e o trabalho do ator em Stanislavski - Nicolai N. Gorchakov

Em 4 de setembro de 1924, Gorchakov, começando seus estudos no Teatro de Arte de Moscou, recém-formado como diretor pelo Estúdio de Vakhtanghov, apresentou para Stanislavski a comédia A Batalha da Vida, direção de conclusão de seu curso. Depois da apresentação, relata Gorchakov, Stanislavski teceu como introdução à análise propriamente dita do espetáculo, os comentários abaixo. Foi para mim uma grande alegria ver na boca do mestre considerações sobre as quais venho insistindo muito nos últimos anos. Tenho por certo que o entendimento e o comprometimento intelectual com o espetáculo é fator determinante para a qualidade da atuação. Roberto Mallet.
"A fim de que eu possa falar a vocês com toda franqueza", começou Stanislavski, "têm que responder-me à seguinte questão: quantas vezes gostariam de representar essa peça?"
Sua pergunta surpreendeu-nos a todos, e por isso não sabíamos como responder.
"Sei que vocês gostam dessa peça", continuou, "pois já representaram-na muitas vezes com êxito. Eu também gosto dela. O diretor analisou-a com acerto. Há muitos momentos comoventes e cheios de sinceridade na atuação individual de vocês. Vocês merecem representá-la. Mas estou interessado em saber quantas vezes gostariam de fazê-lo. Quantos anos? Pretendem que a mantenhamos no repertório do Teatro de Arte de Moscou?
Sentimo-nos numa sinuca. Alguns de nós até começaram a rir por puro desconcerto. Nossos sonhos não tinham ido tão longe.
"Só esperávamos que ela pudesse ser mantida durante uma temporada", eu disse.
"Isso é mau", replicou Stanislavski. "O artista deve trabalhar com a intenção de que sua criação perdure. Vamos, digam-me, gostariam de representar essa peça duzentas vezes?"
"Claro que sim, Constantin Serguêievich."
"E fariam alguns sacrifícios para tanto?"
Embora a pergunta tenha sido formulada em um tom cálido e afetuoso, percebemos a sua seriedade e instintivamente permanecemos em silêncio. Até o ator mais jovem e inexperiente sabe quão fatal pode ser sua resposta. Mas sendo eu o mais velho da companhia, e sabendo que a questão dos "sacrifícios" era dirigida a mim, em minha condição de diretor, compreendi que tinha que falar.
"Peço-lhe que não se incomode conosco por não respondermos à sua pergunta imediatamente, Constantin Serguêievich", eu disse. "Você provavelmente nos compreende melhor do que nós mesmos. Diga-nos por favor o que precisamos fazer para melhorar nossa atuação e conservar a peça no repertório o maior tempo possível."
"Estão todos de acordo com Gorchakov?", perguntou Stanislavski. Logo continuou: "Não conheço vocês muito bem. Encontramo-nos pela primeira vez ao redor da mesa de trabalho e não quero pôr a perder o começo de sua carreira de artistas. Prometo-lhes que a peça será representada e que vocês estarão nela, mas não imediatamente."
Respondemos unanimemente que faríamos tudo o que ele achasse que devíamos fazer.
"Tratem de não ter que lamentar essa decisão dentro de uma hora", respondeu com certa ironia.
Logo continuou: "Perderei muito pouco tempo em analisar os méritos de sua atuação. Por favor, não me levem a mal. O tempo é breve de agora até o momento em que a peça deve ser apresentada de novo. Todos vocês compreenderam bem o autor, e o diretor conduziu com acerto o trabalho de criação dos personagens de Dickens. Vocês permaneceram fiéis ao tema da obra e, por isso, a trama e a idéia ficaram claros para a platéia. Trabalhando em consonância com o diretor, encontraram o ritmo adequado e resolveram seus problemas de atuação com sinceridade e entusiasmo. A atuação de vocês estava inspirada por uma devoção juvenil. Isso chega ao público, encanta-o e faz com que passe por alto os defeitos. Vocês têm defeitos? Creio que sim, mas não estão conscientes deles. Não os sentem... pelo menos ainda não. Minha tarefa consiste em apontá-los, convencer-lhes de que têm que combatê-los, livrar-se de alguns e transformar outros em benefícios. O principal defeito é sua juventude. Estranham que lhe diga isso? Não conseguem seguir o fio de meu pensamento? Vou me explicar.
"A juventude é uma maravilhosa se vocês puderem conservá-la sempre, mas isto é difícil de se fazer. É claro que me refiro à juventude interior. Não há uma só mulher de idade madura entre vocês. Nessa montagem, mesmo os papéis de anciãos são representados por atores jovens. Se essa mulher de idade madura de que eu falava estivesse sentada entre nós, nós a ouviríamos suspirar profundamente e com simpatia em resposta às minhas palavras.
"Bem, agora analisemos o que significa ser jovem em cena. Isto não tem nada a ver com maquiagens nem com a maneira de se vestir. Conhecemos muitos exemplos em que os figurinos mais coloridos e a maquiagem mais juvenil só contribuíram para pôr em maior evidência a idade do ator. Ao mesmo tempo, sabemos que um ator ou atriz maduros podem desempenhar um papel juvenil sem a ajuda de maquiagem ou de figurinos chamativos, desde que ele ou ela conheçam o segredo da juventude teatral. Vocês devem estar surpresos agora, perguntando-se qual o sentido de falar-lhes isto sendo vocês jovens, e justamente quando acabo de elogiá-los pelo frescor de sua representação. Digo isto agora porque vocês não têm a menor idéia de quão rápido vocês e sua atuação podem envelhecer sem que sequer se dêem conta disso.
"A primeira coisa essencial para conservar jovem uma representação", continuou, "é manter viva a idéia da peça. Ela é a razão pela qual o dramaturgo a concebeu, e é a razão pela qual vocês decidiram representá-la. Não se pode nem se deve atuar em cena, não se pode nem se deve produzir uma peça pelo prazer de representá-la ou simplesmente de produzi-la. Vocês têm que sentir-se comovidos em sua profissão. Têm que amá-la com devoção e apaixonadamente, não por si mesma, não por seus lauréis, não pelo prazer e o deleite que lhes dá como artistas. Têm que amar a profissão que escolheram porque ela lhes dá a oportunidade de comunicar idéias que são importantes e necessárias para o público. Porque lhes oferece a oportunidade de, através das idéias que vocês dramatizam e através dos caracteres que personificam, educar o público e convertê-lo em membros da sociedade mais sensíveis, mais sábios, mais úteis e melhores. Eis aqui um problema imenso para o teatro, especialmente em nossos tempos, quando muitíssimas pessoas vêm pela primeira vez ao teatro. Se esse público novo vê e ouve as respostas para seus problemas, aprenderá a amar o teatro e o aceitará como uma coisa própria. Portanto, o primeiro passo para conservar a juventude teatral é responder claramente para si mesmo à pergunta: Por que represento esta peça?
"Hoje vocês sabiam o propósito que os levava à representação. Queriam impressionar-me como atores. Cumpriram seu propósito. Quando vocês fizeram sua representação na Escola Vakhtanghov, também conheciam o propósito: queriam ser reconhecidos como atores maiores de idade, já graduados. Cumpriram este propósito também. Mas o que foi suficiente ontem, o que foi suficiente hoje, não o será amanhã, quando apresentarem a peça para o público em geral. É importante para os espectadores que os pensamentos e a vida deles estimulem vocês e que os pensamentos que enchem a vida da cena estimulem-nos. Ao público importa a idéia do autor e a apresentação e a interpretação que vocês façam dela como artistas de teatro. A idéia tem sempre que ser vital e importante para o público de hoje, e é necessário que vocês sejam capazes de reproduzi-la com um tom verdadeiro. Devem manter viva a idéia e ser inspirados por ela em cada representação. Este é o único caminho para conservar a juventude na representação e ao mesmo tempo a juventude de vocês como atores. E verdadeiro trabalho de criação da idéia da peça (insisto na palavra verdadeiro) exige do artista amplo e variado conhecimento, constante auto-disciplina, a subordinação de seus gostos e hábitos pessoais às exigências da idéia, e algumas vezes também certos sacrifícios."

In "Las lecciones de `régisseur´ de Stanislavski", Nicolai M. Gorchakov, tradução em espanhol (sem o nome do tradutor), Ediciones Pueblos Unidos S.A., Montevideo, 1956, págs. 45-48. Tradução de Roberto Mallet.

Sobre o ator e sobre o teatro - Nelson Rodrigues

A verdadeira vocação dramática não é o grande ator ou a grande atriz. É, ao contrário, o canastrão, e quanto mais límpido, líquido, ululante, melhor. O grande ator ou atriz é recente. Até poucos anos atrás, representava-se cinema e teatro aos uivos e às patadas. Era hediondo e sublime. Ao passo que o grande ator nada tem de truculento nem berra. É inteligente demais, consciente demais, técnico demais; e tem uma lucidez crítica, que o exaure. O canastrão, não. Está em cena como um búfalo da ilha de Marajó. É capaz de tudo. Sobe pelas paredes, pendura-se no lustre e, se duvidarem, é capaz de comer o cenário. Por isso mesmo, chega mais depressa ao coração do povo, deslumbra e fanatiza a platéia. (1)
Três anos depois [do assassinato de Roberto Rodrigues, irmão de Nelson], descobri o teatro. Fui ver, com uns outros, um vaudeville. Durante os três atos, houve, ali, uma loucura de gargalhadas. Só um espectador não ria: - eu. Depois da morte de Roberto, aprendera a quase não rir; o meu próprio riso me feria e envergonhava. E, no teatro, para não rir, eu comecei a pensar em Roberto e na nudez violada da autópsia. Mas, no segundo ato, eu já achava que ninguém deve rir no teatro. Liguei as duas coisas: - teatro e martírio, teatro e desespero. No terceiro ato, ou no intervalo do segundo para o último, eu imaginei uma igreja. De repente, em tal igreja, o padre começa a engolir espadas, os coroinhas a plantar bananeiras, os santos a equilibrar laranjas no nariz como focas amestradas. Ao sair do vaudeville, eu levava comigo todo um projeto dramático definitivo. Acabava de tocar o mistério profundíssimo do teatro. Eis a verdade súbita que eu descobrira: - a peça para rir, com essa destinação específica, é tão obscena e idiota como o seria uma missa cômica. (2)
[Trecho escrito para a apresentação da peça Perdoa-me por me traíres] Morbidez? Sensacionalismo? Não. E explico: a ficção, para ser purificadora, precisa ser atroz. O personagem é vil, para que não o sejamos. Ele realiza a miséria inconfessa de cada um de nós. A partir do momento em que Ana Karenina, ou Bovary, trai, muitas senhoras da vida real deixarão de fazê-lo. No "Crime e Castigo", Raskolnikov mata uma velha e, no mesmo instante, o ódio social que fermenta em nós estará diminuído, aplacado. Ele matou por todos. E, no teatro, que é mais plástico, direto, e de um impacto tão mais puro, esse fenômeno de transferência torna-se mais válido. Para salvar a platéia, é preciso encher o palco de assassinos, de adúlteros, de insanos e, em suma, de uma rajada de monstros. São os nossos monstros, dos quais eventualmente nos libertamos, para depois recriá-los. (3)
(1) Rodrigues, Nelson. A Menina sem estrela. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, pág. 63.
(2) Idem, ibidem, págs. 95-96.
(3) Castro, Ruy. O Anjo Pornográfico. São Paulo, Companhia das Letras, 1992, pág. 273.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Ação Corporal: Matéria do Ator - Roberto Mallet

Quem é mais artista do que o ator?
A matéria plástica a que ele imprime a sua
concepção, o seu sentimento criador, não é
menos digna do que o mármore, por ser o
conjunto das expressões humanas.
(Joaquim Nabuco, Escritos e
Discursos Literários, p. 40)


A obra de arte é uma complexa composição de forma e matéria. A maneira mais simples de ver isto é no clássico exemplo do oleiro, que imprime a forma do vaso na argila.
Matéria é tudo aquilo de que alguma coisa é feita. Um quadro de Picasso é feito, digamos, de madeira, tecido, tintas. Uma sinfonia de Beethoven é feita dos sons dos diversos instrumentos e das execuções dos músicos. Um filme de película e de luz. (1)
Forma é a maneira como a matéria é organizada, sua estrutura. É uma forma o que o escultor imprime ao bronze. São formas o que Picasso inscreve com tinta em suas telas. A disposição das palavras é a forma do poema. De outro ponto de vista ela é o princípio estrutural da obra (a concepção, a idéia – eidos). A forma não é uma figura estanque; ela tem um dinamismo interno que organiza a matéria conformando assim a obra.
E no caso do ator? O que é matéria e o que é forma na atuação?
A matéria do ator é fundamentalmente seu próprio corpo. As ações que ele realiza conformam esse corpo.

Sua matéria é um organismo vivo, composto por tecidos e órgãos, com um cérebro capaz de armazenar e processar um número incalculável de informações. Por não ser exterior ao ator – ao contrário, o corpo é o próprio ator –, essa materialidade está em constante interação com o psiquismo. Um movimento corporal terá ressonâncias na memória e nos sentimentos, assim como uma lembrança ou um pressentimento têm ressonâncias corpóreas.
A forma de uma atuação é a composição das diversas ações realizadas. É a estrutura de tensões e relaxamentos musculares, o jogo de vetores e contra-vetores que o ator executa com seu corpo, e que resultam em um texto legível.

Podemos, numa outra instância, considerar todas as possibilidades de ação corporal como matéria para o ator. Essa ação, que era forma no extrato anterior, faz parte agora de um novo composto, o corpo agindo, que passa a servir de matéria para a criação poética (2). As diversas maneiras de olhar, por exemplo, apresentam-se ao ator como opções para a composição da cena. Ao realizar uma dessas possibilidades no contexto da cena, ele cria uma nova forma, agora no plano ficcional.

O primeiro extrato é concreto, o segundo abstrato; as ações do ator pertencem ao primeiro, as da persona (3) ao segundo. Fazendo uma analogia com a literatura, as ações corporais correspondem às palavras, as ações ficcionais ao significado.

Quando por exemplo um ator representa Otelo assassinando Desdêmona, o que acontece concretamente é uma série de movimentos e tensões realizados pelo corpo do ator em relação com a atriz e com a corporalidade da cena como um todo. O assassinato de Desdêmona (e todas as “realidades psíquicas” que o acompanham) se dá num plano ficcional, espectral. Ou, dito de outra maneira, o assassinato se dá concretamente na imaginação dos artistas e dos espectadores envolvidos na representação.

A forma da obra do ator é então, do ponto de vista da encenação, a composição das ações ficcionais realizadas pela persona; do ponto de vista da atuação a composição das ações corporais realizadas pelo próprio ator ao longo da encenação.

Uma vez que a atuação (como todas as artes espetaculares) só existe enquanto está sendo realizada diante de um público, a sua materialidade não se limita às ações corporais – ela inclui a própria pessoa do ator. O que o espectador vê não é apenas a persona agindo. Ele vê o ator “jogando” (realizando) essa ação dentro do contexto poético. E vê ainda a relação pessoal que o ator estabelece com a poética e com o conteúdo da obra, vê o sentido que ela faz para ele.
A arte da representação é reveladora. Todo ação realizada em cena nos fala não apenas dela mesma; ela também nos fala do homem que realiza essa ação. O ofício do ator é, como dizia Dostoiévski do seu ofício de escritor, “mostrar o homem no homem”. Através da ação.

* Publicado na Revista do 17º Festival Universitário de Teatro de Blumenau, 2004, págs. 47-48.
(1) Esta noção de matéria corresponde ao que Fayga Ostrower chama de materialidade: Usamos o termo MATERIALIDADE, em vez de matéria, para abranger não somente alguma substância, e sim tudo o que está sendo formado e transformado pelo homem. Se o pedreiro trabalha com pedras, o filósofo lida com pensamentos, o matemático com conceitos, o músico com sons e formas de tempo, o psicólogo com estados afetivos, e assim por diante. Usamos o termo na qualificação corrente “natureza do que é material” (...), ampliando contudo o sentido de ‘material’.” (OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Imago Ed. Ltda., Rio de Janeiro, 1957, pág. 31-2. Os grifos estão no original.)

(1) Esta noção de matéria corresponde ao que Fayga Ostrower chama de materialidade: “Usamos o termo MATERIALIDADE, em vez de matéria, para abranger não somente alguma substância, e sim tudo o que está sendo formado e transformado pelo homem. Se o pedreiro trabalha com pedras, o filósofo lida com pensamentos, o matemático com conceitos, o músico com sons e formas de tempo, o psicólogo com estados afetivos, e assim por diante. Usamos o termo na qualificação corrente “natureza do que é material” (...), ampliando contudo o sentido de ‘material’.” (OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de Criação. Imago Ed. Ltda., Rio de Janeiro, 1957, pág. 31-2. Os grifos estão no original.)

(2) Portanto todo treinamento é, por um lado, desenvolvimento e aprimoramento da ação poética, e por outro criação de um repertório que servirá de matéria para a criação da cena.

(3) Utilizo persona em vez de personagem pela associação imediata deste último termo com o gênero realista.

Recado aos jovens da CAL - Rubens Corrêa

Fui convidado para conversar com vocês sobre o ator; sei que muitos aqui jamais representaram, e outros deram apenas os primeiros passos neste caminho labiríntico que é o mundo da interpretação. É uma tarefa que exige de mim sensibilidade e coragem; acho uma grande responsabilidade falar aos jovens, e é com muita emoção e prazer que passo adiante as humildes sementes do meu trabalho artístico, com a esperança de que alguma utilidade possa ser encontrada nelas e que de alguma maneira elas possam lhes tornar a caminhada menos solitária e mais solidária, na medida em que esta receita muito pessoal provoque dúvidas e reconsiderações, ou toque o sagrado dentro de cada um de vocês, ou reacenda aquela esperança cega que Prometeu garantiu ser a conquista mais urgente para a sobrevivência do homem neste planeta.
O grande poeta e dramaturgo alemão Büchner escreveu numa cena de sua peça "Woyseck": "Cada ser humano é um abismo e a gente tem vertigens quando se debruça sobre um deles."
Acho que nós atores somos duplamente esse abismo-espelho: como seres humanos e como artistas. Nossa missão é provocar vertigem e o revisionamento do abismo dentro de cada espectador, para que depois de cada mergulho em nossos personagens-propostas essas pessoas pensem, se emocionem, compreendam e amem com nova e maior intensidade.
Eu, Rubens Corrêa, ator e artista de teatro, vinte e oito anos de profissão, e séculos e mais séculos de um longo período não sei onde, ofereço a vocês com apaixonada humildade o meu aprendizado nesta caminhada em cima das brasas sem se queimar que é a condição necessária para poder representar e viver com algum significado neste nosso bizarro país sul-americano.(...)
O CÁLICE
Representar para mim é a possibilidade que me foi dada de me comunicar com o meu semelhante através de uma troca de idéias, imagens, palavras, gestos e emoções. Um divertido, fascinante, e muitas vezes cruel jogo que mistura ficção e realidade, consciente e inconsciente, sagrado e profano, amor e ódio, vida e morte. Uma Paixão.
Através dos anos venho elaborando em cima das tábuas o meu trabalho, tentando sempre o difícil equilíbrio entre as conquistas técnicas e a simplicidade da execução. Aqueles instantes, todas as noites, em que represento um papel, são sempre os melhores momentos do meu dia. Isso quer dizer que levo para o palco meus sentimentos, minha idéia, minhas alegrias, meus abismos, meu horror e minha luz. Diariamente filtro essas emoções através das necessidades de cada personagem, e recebo de volta para mim mesmo uma nova compreensão de meus problemas - e acrescento ao personagem um novo enriquecimento conseguido "à quente", quer dizer, arrancado de dentro de mim mesmo.
Com o correr dos anos fui aprendendo a me observar como artista e ser humano, e fui tentando aproveitar em meus desenhos interpretativos a linguagem interior de minha vivência pessoal, para conseguir assim essa difícil união entre arte e vida, que foi sempre a minha grande aspiração.
Sempre acreditei que cada ator traz consigo um material fantástico, inimitável e único, muito difícil de ser conservado e desenvolvido nesta nossa era brutalizada e massificada.
É um cálice de cristal interior, que deve ser preservado e defendido através de muitos terremotos, muita contrariedade, muita decepção e sensação de abandono, mas com momentos também de enorme luminosidade que quando acontecem recompensam o artista e engrandecem o ser humano.
Cada ator é único e inimitável se ele mergulha com honestidade em si mesmo, e retrata o seu semelhante com generosidade, verdade e paixão. "Somos feitos da essência com que os sonhos são feitos" escreveu Shakespeare, e essa é a melhor definição que conheço sobre o mistério da representação.
O CAVALO
Cada ator tem obrigação de zelar e desenvolver o seu instrumental – sua voz, seu corpo: seu cavalo. Devemos transformar nosso corpo num grande arquivo de imagens com possibilidades de serem utilizadas em nossos futuros personagens; nossa voz deve poder miar, rugir, gemer, uivar – nossas mãos podem ser galhos de árvores, garras de feras, folhas secas ao vento – nossos pés, colunas de um templo, patas de animais. Nossos olhos devem poder reproduzir o enigma do olhar da esfinge, e a clareza cristalina de um poema de Brecht.
E mais, devemos nos preparar para poder receber com artística mediunidade a alma do mundo, as grandes interrogações do nosso tempo, a voracidade deste universo em constante transformação.
Devemos ser suficientemente fortes para poder reproduzir simultaneamente a maravilha e o horror do ser humano, a criatividade e a autodestrutividade de nós todos, homens, através desta difícil caminhada da vida.
O nosso cavalo deve então se preparar para poder assumir todas estas formas, e por isso ele tem de ser constantemente reabastecido e renovado.
O cavalo é também o estimulador de nossa energia, o conservador de nosso entusiasmo e de nossa fé; quando as crises vierem (e não tenham dúvida de que elas virão), nada melhor do que trabalhar na fortificação do cavalo, porque no mínimo estaremos crescendo durante a crise, estaremos trabalhando e temperando novas energias, adquirindo novas técnicas, novos conhecimentos. Podem ter certeza de que um bom cavalo torna o ator indestrutível.
O FOGO
O fogo através do tempo sempre foi o símbolo vivo da fé, do entusiasmo e da rebeldia; mantê-lo aceso dentro de nós é também um trabalho para a vida inteira. O fogo nasce de um estado de curiosidade natural e instintivo e pode ser desenvolvido através da conquista progressiva de uma cultura geral, de uma observação apaixonada da história do homem, da história de todas as artes, da emocionante história do teatro – e um profundo sentimento de observação do ser humano – aqueles para quem realizaremos nossas mágicas, o nosso público. Esse fogo interno, uma espécie de grande rol central de energia e fé, é uma grande defesa contra a acomodação, e me parece ser a grande mola propulsora da criatividade; devemos estar sempre atentos aos seus chamados, e é preciso não deixar nunca, custe o que custar, esse fogo esmorecer, porque, caso isso aconteça, seremos os artífices de uma arte morta, sonâmbula, inútil, feia e resignada.
O MENINO
A recuperação da liberdade da infância através da vida adulta foi sempre uma das minhas metas; a criança é uma fonte incrível de informação artística - e a criança que nós fomos recuperada através do nosso lado lúdico tão atrofiado pelo correr dos anos – pode nos servir de guia, mas um guia muito especial, que caminha alegre e despreocupado, que sabe descobrir o mágico dentro do cotidiano, intuitivamente
Um grande exemplo da presença do menino dentro de um artista está na figura e na obra do pintor Pablo Picasso. "Eu não procuro, eu acho" afirmava o grande pintor. E essa fala denuncia o menino que Picasso levava dentro de si, que pintava cerâmica usando como base para o desenho a espinha do peixe que tinha comido no almoço, ou fazia fantástica escultura aproveitando uma roda velha e quebrada de uma bicicleta encontrada na estrada durante seu passeio matinal. O menino traz alegria e descompromisso racional para o trabalho artístico. No Passeio Público do Rio de Janeiro tem um menino-anjo esculpido num bebedouro (se não me engano de Mestre Valentim) com a seguinte legenda: "Sou útil, inda brincando". Essa é a lei e a sabedoria dos meninos.
Acho que preservando o cálice, domando o cavalo, estimulando o fogo e soltando o menino, o artista está preparado para viver e criar uma vida bela e uma obra útil para a coletividade.

* Aula inaugural da Cal (Casa das Artes de Laranjeiras) – Rio de Janeiro (RJ), em 12 de março de 1984.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

ORIGEM DO TEATRO

Não se sabe ao certo quando surgiu o teatro. Na pré-história, no Egito antigo ou na Grécia já existiam manifestações teatrais. Contudo, o primeiro sinal que podemos indicar como um marco está presente na Grécia antiga. Todos os anos, na Grécia, os deuses eram cultuados em rituais sagrados, onde, numa espécie de procissão, o povo acompanhava histórias dos deuses e também poemas litúrgicos, narrados e recitados por um coro. Esse tipo de celebração se chamava Ditirambo. Com os moldes do ditirambo, surgiu uma outra festa ritualística para cultuar o deus Dionísio. Dionísio era o deus do vinho, da fertilidade. E esses rituais em sua homenagem eram chamados de Dionísias.Foi nas Dionísias que surgiu o primeiro traço do teatro como ele é hoje. Um dos componentes do coro, um fingidor chamado Téspis, certa vez se desligou do coro e subiu em sua carroça dizendo ser Dionísio, e dialogou com o coro. Passando por cima da autoridade do legislador, Téspis criara uma manifestação artística dentro de uma apresentação puramente litúrgica, se tornando assim o primeiro ator reconhecido da história, e criou também, pela primeira vez, o papel do protagonista. Esse evento foi o primórdio das famosas tragédias gregas.As tragédias gregas eram peças que contavam histórias sobre deuses e mitologia. Eram encenadas em espaços construídos especialmente para esse fim: os teatros. E como a distância entre o palco e os assentos mais longínquos era muito grande, os atores encenavam com grandes máscaras e figurinos. Somente homens atuavam, já que na época as mulheres não eram consideradas cidadãs.Junto com as tragédias, vieram também as comédias, que satirizavam a vida cotidiana. O teatro grego conseguiu sobreviver ao tempo e ainda hoje seus textos são encenados.Com o passar dos séculos, a evolução das sociedades, a cultura e o comportamento humano também foram abrindo espaço para a evolução do teatro. No século XII surgiram os saltimbancos, que eram atores nômades que viviam viajando de cidade em cidade, apresentando suas peças. Por não representarem peças religiosas, eles foram perseguidos pela igreja e tidos como foras-da-lei, e assim começaram a usar máscaras em suas apresentações para não serem reconhecidos.Talvez essa fora a preparação do terreno para um outro gênero teatral, com raízes na Itália: a Commedia Dell’Arte.Na Commedia Dell’Arte, surgida em meados do séc. XVI, os atores também viajavam de cidade em cidade, usavam máscaras típicas e eram versáteis ao ponto de fazer de tudo: cantar, dançar, atuar e fazer malabarismo. Sem uma perseguição da igreja, eles tinham uma liberdade maior em suas peças. Os atores possuíam personagens fixos e as peças eram baseadas na improvisação.Nessa época, também começavam a surgir os teatros como eles são hoje. Casas com palco, platéia e estrutura técnica. Surgiram as óperas e outros gêneros, cada vez mais aprimorados. Com o passar do tempo, tecnologia foi sendo usada a favor de efeitos especiais, iluminação e sonorização. Estava formada, então, a base para o teatro como ele é hoje.